Das coisas sem Rosa uma delas é o Pessoa: as geografias do Manoel e do Nestor na busca do bom professorNestor André Kaercher
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Um consenso logo se fez na fala dos dois convidados - Jorge Barcellos e Manoel Santana - à mesa-redonda VIII deste 10º ENPEG “Quais saberes constituem um bom professor de Geografia?”. A palavra “bom” do título da mesa, deve ser usada com reservas, pois pode dar um tom demasiado prescritivo às falas dos referidos professores. Não vou aqui polemizar com os colegas. Não seria honesto já que estaria fazendo-o posteriormente às intervenções e escritas deles. Basta, então, que você leitor se diriga aos textos deles. Discordando deles, abaixo vou ser pretensioso e colocar-me entre os que ao falar de docência, já colocam suas preferências, e, porque não, postulam ser modelares. Nós professores, sempre somos modelos, ainda que muitas vezes, negativos.
O professor, bom ou mau, sempre é modelar.
Se somos modelos aos nossos alunos, sejamos ambiciosos, sejamos morineanos:
“Ensinar a condição humana. Conhecer o humano é, antes de mais nada, situá-lo no universo, e não separá-lo dele. Como vimos, todo conhecimento deve contextualizar seu objeto, para ser pertinente. “Quem somos?” é inseparável de “onde estamos?”, “De onde viemos?”, “Para onde vamos?”.
Interrogar nossa condição humana implica questionar primeiro nossa
posição no mundo”. (Morin, p. 47)
Como você, professor, pode ‘ensinar a condição humana? Aliás, como você ensina? Sabemos como o outro aprende? Todos temos nossas hipóteses para responder a essas questões! Não raro hipóteses pouco refletidas e problematizadas. Proponho é que coloquemos tais hipóteses em teste e discussão permanente. Para evitar o risco de confundir, algo tão comum entre nós educadores, ‘anos de prática’ com ‘qualidade de prática’. Em termos outros: fazer há muitos anos a docência não implica, necessariamente, fazer bem feito! Tempo de experiência na docência, sem reflexão e auto-crítica, é correr o risco de ‘deitar em berço esplêndido’ da segurança que desmobiliza.
Este texto tem vários objetivos. Tão fáceis de listar quanto difícil de alcançar! Eu e minhas miragens: discutir algumas concepções epistemológicas e didáticas que cotidianamente apresentamos como sendo ‘aula de geografia’. ‘Pensar uma pergunta’: que concepção de ensinar e que visão de ‘ciência’ (no caso, geografia) estão embutidas em nossas aulas? Quero também destacar a importância de apresentarmos visões de conhecimento que contemplem a contradição, o conflito, a imperfeição, o fracasso e a decepção como inerentes e necessárias à docência. Sentimentos estes que devem ser admitidos e pensados para que não fiquem no sótão de nossas memórias ocupando espaço de mágoas e rancores tão facilmente transmitidos aos alunos. Aliás, se conseguirmos admitir que nossa docência carrega muito de rancor e decepção já estamos avançando a repensá-la de forma menos idealizada. Desacomodar uma visão muito impregnada nos professores da disciplina que creem que ‘tudo seja geografia’ ou que a geografia seja uma disciplina ‘atrativa e interessante por simplesmente falar do mundo que habitamos’ aos alunos. Não basta que ela esteja (obrigatoriamente) nos currículos. Quero que ela habite o coração e a mente dos alunos. Sem aquele discurso ufanista “a geografia é a disciplina mais legal porque mais interdisciplinar”. Bobice! Convidar cada professor a buscar os objetivos de suas aulas que ultrapassem o simples ‘vencer o conteúdo’. Precisamos buscar uma boa base epistemológica para que nossos alunos ‘careçam’ (= desejem) nossas aulas e não simplesmente ‘estejam diante de nós’ (= necessitem nos ouvir por obrigação). Quero desafiar mestre Rosa: “Por enquanto, que eu penso, tudo quanto há, neste mundo, é porque se merece e carece” (Rosa, 1986, p. 10). Penso que precisamos seduzir nossos alunos para que eles pensem que a geografia seja merecida de estar no currículo. Cuidemos desta inércia perigosa ... o berço confortável de pensar que a geografia seja carecida pelos alunos. Repensar nossas aulas: como se ensina; como se aprende? Os conteúdos continuarão os clássicos, os do livro didático. Isso não é defeito algum. Podemos, no entanto, por um tempero nestes conteúdos: o que
eu quero ensinar quando ensino ... ‘urbanização’, ‘geografia agrária’, ‘aspectos da natureza’, ‘globalização’, etc? Que valores éticos, estéticos e políticos eu levo junto com meus conteúdos?
Por fim, mas não por último, o texto deseja homenagear e dialogar com a geografia de Manoel Fernandes Sousa Neto. Com isso quer-se também atiçar o leitor a buscar seus inspiradores, seus parceiros de viagem que não apenas os livros didáticos e ou livros técnicos. Incentivar meu leitor a escrever a sua palavra, divulgar a sua ideia porque a docência requer dizer sua palavra, de preferência, na forma escrita. Não somos índios, viventes numa geografia sem grafia. Vamos grafar a terra!
Alguns aperitivos de provocação para pensar a fé, às vezes quase cega, no poder da geografia
“A geografia, isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra” (Lacoste, 1988)
“Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães ...” (Rosa, 1986, p.1)
“Das coisas sem serventia uma delas é a geografia” (Sousa Neto, 2008, p.)
Comparemos a pedante, clássica e ótima frase de Lacoste com a que parafraseia o título deste artigo, muy provocativa, iconoclasta e também ótima de Sousa Neto (de hora em diante denominado simplesmente Manoel). Lacoste acordava-nos há mais de vinte anos atrás: ei, o que estamos fazendo com a geografia?! Algo tão político, polêmico e dinâmico como a disciplina de geografia foi/é/está sendo domesticado, pasteurizado, higienizado em nossas aulas! Acordem professores, acordemos nossos alunos, panfletava-nos o mestre francês. Ele permanece atual ao criticar a ‘geografia dos professores’, que eu denomino ‘geografia do pastel de vento’ porque apesar da bela aparência (‘a Geografia é demais!’) – na nossa própria visão, claro – muitas vezes lhe falta substância, poder analítico e reflexivo (Kaercher, in Terra Livre, n.28).
Sousa Neto, ops, Manoel, é pura e necessarísima provocação. Ei, não acreditemos tão automaticamente que nós, professores de geografia, estejamos conseguindo alertar e provocar nossos alunos do Ensino Fundamental e Médio (EFM) só porque cremos (que bom!) que a dita cuja geografia seja importante e interessante. Para muitos alunos ela é, de fato, algo ainda enfadonho e insosso. Estou sendo pesado, pessimista? Talvez. Não seria a primeira vez a sê-lo. Esses ouvidos e velhos olhos azuis já ouviram e viram cada coisa, sempre em nome da geografia,na província de São Pedro do Rio Grande do Sul! E com as boas intenções que sempre nos acompanham! Sugiro então, a você colega, que trabalha na graduação, que interrogue seus alunos: como foram suas aulas de geografia? Os relatos não são dos mais alvissareiros. ‘Ah, mas isso mudou! Já está sepultada a geografia mnemônica e vazia de sentido’, vão dizer os necessários otimistas. Desculpe-me, mas estou lendo agora relatos de aulas de geografia que meus alunos estagiários assistem e o quadro é preocupante. Às vezes o que se lê é aterrador. Predomina ainda uma prática pedagógica que leva os alunos do EFM não darem importância às nossas aulas, pois não veem nelas sentido. E não prestar atenção nestas aulas não deixa de ser um bom senso, em muitos casos, pois o prato oferecido com o nome de geografia é frio e insosso (pastel de vento?). Não que sirva de consolo, mas este não é um quadro exclusivo da ‘nação de chuteiras’. Rodríguez e Lache (2008, pgs. 268, 270, 272, 289) dizem coisas que nos devem por em alerta para buscarmos, com muita humildade e reflexão: a renovação das nossas práticas pedagógicas vai demandar muito estudo e câmbios epistemológicos.
Sim, sei que os motivos para o desânimo dos professores é racional e farto. Os desanimados tem razão em ‘dar qualquer coisa’ para seus alunos. Mas, eu não quero ter razão! Eu quero ser feliz! E, sendo professor, posso crer (todo professor é um crente, ainda que ateu seja) que posso fazer a diferença com meus alunos e dar o meu melhor. Eu preciso estar bem em sala para dar uma aula boa. Para agradar aos alunos? Não, para manter-me vivo! Vejam quão contraditório é esse humilde escriba: os otimistas tem razão em tentar fazer a diferença na e com a docência! Os pessimistas tem razão em crer que a educação (e nossas aulas) podem muito pouco! Dialética e conflituosa situação. Assim é a vida. “Tudo é e não é ... Quase todo mais grave criminoso feroz sempre é muito bom marido, bom filho, bom pai, e é bom amigo-de-seus amigos!” (Rosa, p.5). Daí o motivo de ter colocado Rosa acima no meu título: todas as opiniões sobre a geografia são válidas. Inclusive sobre sua (des)importância. Conquanto sejam argumentadas de forma plural e contraditória com nossos alunos. Daí ficaria mais contente em saber que a geografia, como coisa do mundo, é necessária e dela se carece, mesmo que não seja tão precisa no sentido de precisão ( = exatidão). Daí a frase genial do monstro Pessoa: “viver não é preciso, navegar é preciso”. Queremos, não raro, fazer da docência e da geografia, algo preciso, exato, meramente racional. Não é. Não é só isso. Mais importante que a sua precisão/exatidão é ... o percurso feito com ela junto com os alunos. Com isso coloco outro alerta. Não esperar que vamos aprender nas Faculdades de Educação a sermos professores. Ali pode se obter bons conhecimentos, mas para a docência há que se ter paixão. E essa você não vai aprender em faculdade alguma.
“Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é, Mas porque a amo, e amo-a por isso, Porque quem ama nunca abe que ama Nem sabe por que ama, nem o que é amar ...” (Pessoa, O guardador de rebanhos, poema II).
Em tempo: ser contraditório não é ‘erro’, algo a ser apagado, corrigido. Ser contraditório é ser humano, estar vivo, pensante, pulsante, aprendiz permanente. Estar aberto ao novo, sabendo a dor que é ter que mudar. Papo furado quem diz que mudar é bom, todos gostam. Quimera. Mudar dói. “Pensar incomoda como andar à chuva quando o vento cresce e parece que chove mais” (Pessoa, O Guardador de Rebanhos, poema I).
Continuemos com mais uma outra provocação: nossas aulas
“Quando as crianças brincam
E eu as oiço brincar,
Qualquer coisa em minha alma
Começa a se alegrar
E toda aquela infância
Que não tive me vem,
Numa onda de alegria
Que não foi de ninguém.
Se quem fui é enigma,
E quem serei visão,
Quem sou ao menos sinta
Isto no meu coração.
(Pessoa, 2007, p. 138)
Se Deus existe, não sei ... ‘nessas altas ideias navego mal’ (Rosa, p.7), mas Pessoa é ‘existível’. Nele creio ‘quieto feito ouvindo santa-missa perto do altar’ (Rosa, p.319) e penso que:
a) perceber o sorriso de uma criança pode nos ajudar a sermos docentes mais animados pois ‘somente com a alegria é que a gente realiza bem’ (Rosa, p. 368). Veja a associação do sorriso com as memórias da infância! Já se deram conta como as memórias revelam espaços, nos trazem paisagens e lugares? Sepúlveda (2009, p. 89) propõe “o corpo como uma forma primeira de espaço”. Complementa (idem, p. 85):
“compreender a apropriação que o indivíduo pode fazer de seu corpo ou dos
espaços primeiros, é um passo inicial para chegar a construir uma verdadeira
morada. Tudo isso é possível se se propicia um ensino que se orienta a
constituição de sujeitos”.
Aqui há um baita problema: como manter o ânimo quando a realidade nos maltrata tanto? Concordo que ser alegre é bom, mas isso não está disponível em nossa dispensa sempre. Ser alegre não implica ser abobado. Temos, contudo, compromisso em manter a vida pulsando em nossas escolas, e isso significa, entre outras coisas, reflexão e discussão sistematizada de ideias. Manter-se animado não para parecer ‘simpático’ aos alunos, mas como condição sine qua non para manter-se vivo na profissão, que é árdua, não raro, árida.
b) não tem como ‘docenciar’ sem perguntar a si e aos alunos: quem somos, ainda que a resposta seja um enigma (daí a razão da epígrafe de Morin no início do texto);
c) que pra docenciar bem se carece ter visões, crenças e que, por mais racional que seja este ato é preciso sentir com coração. E que ‘sentir sensações e emoções’ não é matéria/conteúdo de nenhuma faculdade! Nem de Educação!
Que os educadores diante de tantos enigmas (afinal, desconhecemos muito mais do que sabemos) da vida saibam propor visões, sentimentos e perguntas aos discentes, sejam lá quais forem suas idades.
d) Sentir com o coração e a razão não garante boas aulas, pois ‘viver não é preciso, navegar é preciso’. Então, naveguemos, mas o façamos juntos, tendo os alunos como parceiros, pois ‘é no junto que a gente sabem bem, que a gente aprende o melhor...” (Rosa, p. 302)
Vejam o relato de um estagiário sobre aulas – ministradas em março de 2009 em escolas de bairros bem localizados/estruturados de Porto Alegre - de geografia (fiz pequenas supressões para diminuir a acidez do relato):
“O primeiro exercício ela fez com todos. O segundo ela (professora) mandou fazer
sozinho, mas era praticamente igual ao desenho que ela tinha posto no quadro. Na
verdade era só copiar do quadro os pontos cardeais e colaterais. Não exigia
qualquer raciocínio do aluno. (...) Essa atividade de repetição foi seguida pela
pintura da figura da folha. Chamou-me a atenção a proibição do boné na sala. Essa
aula foi ruim, na minha opinião. Perderam-se bons minutos nesta história de pintar
figuras. Ela poderia ter colocado outros tipos de exercício, já que era revisão. Por
fim, a professora mandou um tema de casa perguntando o que era Latitude e
Longitude. Tarefa muitíssimo simples e que os alunos já comentavam entre si que
era só copiar do caderno do ano passado”.
Continua, outra aula observada:
“Mandou colorir o mapa e colocar na pasta. Ela simplesmente não aproveitou
aquele recurso para trabalhar algo. Não havia perguntas, curiosidades, figuras,
nada ... apenas o bom e velho mapa que estamos acostumados a ver, mas não
necessariamente conhecemos. Sua intenção era literalmente deixar a gurizada
ocupada! Nenhum trabalho foi visto ou valorizado. A questão era somente ocupar
a gurizada. Não houve interação. Como se estivessem sozinhos na aula.
Foi uma aula interessante de observar. Foi bom ter ficado uma tarde inteira com
eles e visto o quão difícil é agüentar ate o fim. Sempre que eu saio do colégio fico
pensando o resto da tarde que eles ainda vão ficar lá. Isso me dá motivação extra
para fazer algo mais interessante, ou menos penoso, no mínimo, para eles”.
Não se trata de buscar com lupa ‘maus’ exemplos de aulas. Não, infelizmente, este relato é bem mais comum do que gostaríamos. Tampouco trata de desconsiderar as dificuldades cotidianas dos professores do EFM. O desânimo do docente, sem dúvida, parece ser um dos maiores obstáculos. Os professores estão desmotivados, e tem suas razões. A questão é que isso afeta um bom número de adolescentes que, num círculo nada virtuoso, desmotivar-se-ão com os ensinamentos. Nesta hora digo para meus alunos estagiários: se vocês não conseguirem vínculo com seus alunos, não buscarem neles motivação e energia, a docência fica não só árdua, como sem sentido.
Um outro estagiário numa outra escola escreve:
“Desde o início S – a professora titular – sempre se mostrou muito aberta, sincera
e prestativa. Demonstrou seu total descontentamento em ministrar a disciplina.
Disse-me: ‘Estou aqui apenas para tapar um buraco, enrolar e passar o tempo
deles’. Mal sabe, aliás, bem sabe ela, o rombo geográfico (!!!) que está causando
nos alunos. (...) Na aula há uma bagunça generalizada. Este ambiente não favorece
em nada o desenvolvimento das atividades ligadas a geografia, que são levadas
apenas através de trabalhos em grupo, que nada mais são do que responder três ou
quatro perguntas que estão no livro, ‘valendo nota’.”
E, noutro dia, outra observação, com a mesma professora:
“Tem medo declarado de alguns alunos, de nenhuma forma interagindo com eles,
nem mesmo repreendendo os que comprometem com suas atitudes o andamento
da aula. Não dialoga com a turma toda, apenas de forma individual ou em
pequenos grupos (...) Trabalhou apenas com o livro didático, copiando um texto no
quadro, no meio de um barulho muito grande. Foram dez minutos para tentar
controlar a turma, mas sem nenhum sucesso. Só três alunos pareciam interessados
em copiar. A questão que ela coloca estava fora do contexto do livro. Era uma
questão relacionada a velocidade da luz, com a distância entre a Terra e a Lua. (...)
Muitos alunos cansados de não fazer nada, conversam sobre quaisquer assuntos.
Há muito barulho”
Um pequeno trecho de outra estagiária:
“Nesta aula destaco o uso do tempo em sala de aula. As respostas solicitadas aos
alunos estavam no texto e poderiam ser feitas em casa, já as questões reflexivas
não foram pedidas. Certamente seria mais produtivo se, ao invés de ficarem
copiando trechos do livro, fossem discutidas as respostas e feitas as questões que
não estavam no texto”
Para finalizar esta parte e não ficar só nos exemplos desestimulantes a aluna- estagiária
coloca:
“É uma turma muito participativa. São agitados, como qualquer criança desta faixa
etária (10-12 anos). Eles querem falar. Querem fazer. Percebo que querem fazer as
atividades não para se livrarem delas, mas para mostrarem que sabem. As atitudes
deles me fizeram parar para pensar quando é que perdemos a espontaneidade para
perguntar, falar, refletir? Será que é na escola? Tive medo de ser eu uma daquelas
professoras que vai podar essa vontade que eles tem de fazer tudo, de conversar,
de opinar.
Percebi que eles não são resistentes a aula, eles até gostam. Se a atividade for
envolvente, intrigante, eles fazem, trocam idéias, conversam sobre, ajudam-se. No
geral, exceções a parte, são muito participativos e interessados”.
A fé no aluno como pressuposto epistemológico
O que eu gostaria de destacar é a importância do professor colocar ‘fé’ nos alunos. Faz toda a diferença. E, de novo, ‘fé’ não se aprende na universidade. Uma atitude epistemológica (meu aluno pode, meu aluno sabe, meu aluno quer (aprender, por exemplo) vai gerar um movimento pedagógico e epistemológico duplo: eu vou, como professor tentar atingi-los de forma a se engajarem nas minhas aulas e propostas e, segundo minha experiência, vão também perceber meu envolvimento, meu interesse em ensinar-lhes coisas legais. E vão tentar me agradar, vão tentar me satisfazer. Qual o pressuposto ai: somos carentes, precisamos do outro, seja na condição de professor ou aluno. Quem me disser que a reação dos alunos a sua aula é indiferente está, provavelmente, blefando. Eu quero agradá-los sim. Mas isso não implica em não ter autoridade, não cobrar, não ser exigente. Nem tampouco cair na armadilha de ser só ‘amigo’, simpático ou ‘show man’! O contrário, está claro em vários depoimentos de professores que são marcantes: a sua seriedade e compromisso em promover a aprendizagem são percebidas pelos
alunos como virtudes. E a cobrança é bem vista pelos alunos, ainda que, num primeiro momento, reclamem.
E a geografia do Manoel Fernandes? Um decálogo que é meu também ...
“Temos, todos que viemos,
Uma vida que é vivida
E outra vida que é pensada,
E a única vida que temos
É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada.
Qual porém é a verdadeira
E qual errada, ninguém
Nos saberá explicar;
E vivemos de maneira
Que a vida que a gente tem
É a que tem que pensar
(Pessoa, 2007, p. 144-5)
Com mais este excerto de Pessoa quero prosseguir na ideia, já aventada em outros textos ((Kaercher in Neves et al, 2007, Kaercher in Pereira et al, 2008) que a geografia, assim como as demais disciplinas escolares, precisa ajudar o aluno a ver o mundo de forma mais plural e complexa. Uma geografia
que busque nossa ontologia. Rego (no prelo) também defende a geografia como uma possibilidade de reconstrução ontológica: a geografia como pretexto para repensarmos nossa existência. Uma das formas de fazer é refletir os temas do cotidiano, por exemplo, os temas da mídia, inclusive programas sensacionalistas da televisão, usando as categorias espaciais: espaço, natureza, território/propriedade, lugar, diferenças sociais e da paisagem, pois estes conceitos são visualizados no espaço, na cotidianeidade.
Comecei o texto pensando no Manoel e fui me metendo no Pessoa, no Rosa pois é tudo muito misturado: “A vida inventa! A gente principia as coisas, no não saber por que, e desde aí perde o poder de continuação – porque a vida é mutirão de todos, por todos remexida e temperada” (Rosa, p.406). Deixa eu voltar ao Manoel pois ele, com todo o respeito – a ‘bençaum, mano’ - , é pretexto para repensarmos constantemente nossa docência, almejando como fim maior (sem haver final, que a ‘única conclusão é morrer’, também já nos ensina Pessoa) a dialogicidade com os alunos e uma prática escolar reflexiva que promova a escrita, a leitura e a oralidade de nossos alunos não com o intuito maior de avaliá-los, mas sim de discutir nossa existência, nossa espacialidade, nossa sociedade.
Voltemos ao Manoel, então. Jogo algumas ideias dele no papel para que você leitor reivente-as, reescreva-as, com sua razão e com sua emoção. Vou evitar tecer comentários para não ser redundante e não me estender demasiado. O número no parêntese é a página da obra de Sousa Neto, digo, Fernandes, ou melhor, do Manoel.
Algumas sementes para grafarmos a Terra manuelinamente:
1. “Por isso é impossível, ou quase, aceitar que exista aquele professor que não queira,
antes de mais nada, vir a saber, o que exige dele uma atividade permanente de investigação” (17).
“Por isso a aula é antes de mais nada sonho e trabalho, imaginação criativa e dança, poesia e luta,
como na Ilíada de Homero” (18). “As aulas são para mim aquele momento e lugar em que
devemos dar o melhor de nós e despertar o que há de melhor nos outros. A aula como diálogo
criativo” (19).
Veja: sonho e trabalho. Juntos. Indissociáveis. Não é só imaginar um mundo de ideias, um mundo perfeito. É operacionalizar isso! Com labor, suor. E, dialeticamente, que esse labor tenha o nosso melhor. E o nosso sonhar.
2. “Dizer como dar uma aula ou como devem ser as aulas é como negar tudo aquilo em que efetivamente acredito. E poderia até lhes perguntar se devemos oferecer as pessoas apenas aquilo que elas esperam de nós ou se devemos surpreendê-las permanentemente (...) Ao invés de tratá-los como incapazes e fornecer-lhes instrumentos com os quais vocês devem se adaptar, imagino que é preciso tratá-los como criadores” (20-21).
3. “O importante é que o professor antes de estar disposto a dar respostas deve fazer a si mesmo uma série de perguntas: a quem ensinar? O que ensinar? Quando ensinar? Como ensinar?” (24). “A aula de geografia pode contribuir para fazer as pessoas pensarem sobre suas imagens de mundo, o modo como foram construídas, as razões pelas quais se mantêm e as maneiras outras de imaginar esse mesmo mundo” (27).
As respostas ao que Manoel propõe são variadas, mas sempre vão exigir de nós reflexão e abertura a repensar nossas certezas. Uma dica nos é dada: pensar as imagens que temos do mundo. Bonito. Imagens de mundo? O mundo não é (apenas) como imaginamos! Como se a realidade fosse (só) a dos meus olhos e sentidos. Podemos ver a mesma Jerusalém, mas para um judeu é a ‘capital indivisível de meu país, de meu povo’, para um palestino pode ser a terra ‘usurpada’ de meus antepassados. Morin alerta para a dificuldade em termos uma boa ideia da realidade já que sempre ela será vista a partir de nossos referenciais de mundo, referenciais estes que nunca são apenas objetivos ou científicos. E mesmo que fossem não garantiriam muitas certezas e nem acertos.
“Enfrentar as incertezas. Existe, portanto, a dificuldade do auto-exame crítico,
para o qual nossa sinceridade não é garantia de certeza, e existem limites para
qualquer autoconhecimento (...) Dessa forma, a realidade não é facilmente legível.
As ideais e teorias não refletem, mas traduzem a realidade, que podem traduzir de
maneira errônea. Nossa realidade não é outra senão nossa idéia da realidade. (...)
Compreender a incerteza do real”. (Morin, p. 85)
Será que nós professores não temos muitas certezas na docência? Como evitar que nossa boa intenção de “dar conselhos” não resvale no moralismo de apontar o ‘certo’ e o ‘errado’? Discutir identidade é nossa tarefa. Identidade não implica em “essencialismo”, a existência de uma essência. ‘O gaúcho é isso’! Menos, menos... Ao mesmo tempo evitar cair na armadilha de buscar a norma, o normal, o ideal(izado). Lembro da ironia de Borges (p. 122, 2007): “A realidade não tem a menor obrigação de ser interessante”. E, no geral, até dolorosa é. “não se preocupe com os horrores que eu lhe digo, porque ao vivo, meu amigo, a vida é muito pior” cantava o grande Belchior.
4. “O como ensinar implica em estabelecermos que atitudes gostaríamos de vê-los tomando diante da vida, o que dependerá de nossas atitudes dentro e fora da sala de aula (...). Assim, o uso desse ou daquele procedimento em sala de aula implica em compartilhar com os outros o que nós somos. Estamos ali inteiramente com nossa história de vida, nossas angústias, nossas opções sexuais e religiosas. E se nos dermos conta disso podemos ver os estudantes como parte da nossa vida, companheiros de trabalho, pessoas com as quais compartilhamos sentimentos. Ou vê-los como objetos que manipulamos”. (30)
5. “Convivem na mesma cidade, a feira de domingo em que galinhas são pesadas à mão, os supermercados que têm fibra de leitura ótica, os camelôs que andam de porte em porta e os produtos que podemos adquirir pelo correio. Em uma diversidade assim, pensar o espaço tornou a tarefa complexa aos professores de geografia; mas, de certa forma, acabou com a ideia de que o espaço geográfico é uma coisa fixa, morta, petrificada. É preciso saber, por exemplo, por que na mesma feira se oferecem miçangas paraguaias e comida local, de onde vêm as mercadorias, como os novos hábitos mudaram a paisagem da cidade, qual a relação dos mais novos com o lugar em que eles nasceram e crescem, como convivem o menino de recado e o aficçionado em jogos eletrônicos, o seu Zé da bodega da esquina e o grande supermercado, (...) Só compreendendo essa dinâmica espacial é possível exercitar a cidadania, ao relacionar lugares e fenômenos, paisagens e pessoas, processos sociais e transformações naturais”. (48-9)
6. “O mapa brinca com o nosso desconhecimento do planeta” (57). Genial! Uma dica simples, mas eficaz: levem o globo para a sala de aula. Deixem ele correr nas mãos dos alunos. Ele anda sumido das aulas. Junto com ele coloque alguma pergunta, de caráter mais pessoal, no quadro (há tantas a fazer!): que lugar você gostaria de conhecer? Qual a sensação de ter o globo nas mãos? Você vai perceber que ninguém fica indiferente ao globo, seja um aluno adulto ou criança, de EJA ou de Pós-graduação!
7. O texto “Sentidos” (p. 67) também é ... lindo. Os cheiros da infância trazem tantas lembranças! “A epiderme lê o universo nos dias em que deixo o interior da casa e caio no mundo (...) em minha boca – com o sabor das frutas - posso nomear o gosto dos lugares (...) Essas coisas todas que mexem com meus sentidos se misturam quando entro em contato com o mundo, estabelecem códigos de afetividade, desenham seus traços sensoriais dentro de mim. A isso tudo posso denominar de paisagem”. (69)
“E os meus pensamentos são todos sensações. Penso com os olhos e com os ouvidos. E com as mãos e os pés. E com o nariz e a boca.
Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la. E comer um fruto é saber-lhe o sentido. Por isso quando num dia de calor Me sinto triste de gozá-lo tanto, E me deito ao comprido na erva, E fecho os olhos quentes, Sinto todo meu corpo deitada na realidade,
Sei a verdade e sou feliz.” (Pessoa, Guardador de Rebanhos, poema IX)
Pessoa nos propõe o ‘sensacionismo’, isto é, sentir a natureza, pensar a natureza, olhar a natureza numa tríade dialética irresolvível porque tensiona razão e emoção: olhar-pensar-sentir. Não é um ou outro, geografia física ou geografia humana. É geografia.
O cheiro do café lhe faz lembrar o que? O barulho de um sino te leva pra onde?
A associação paisagens com as sensações, os sentidos que nos levam aos afetos, aos gostos e dissabores. O cheiro do café lhe faz lembrar o que? Recorde-se de alguma situação vivida, na infância, com algum avô! Para que lugares você foi com estas lembranças? Que reflexões sobre o espaço e a sociedade nos podemos fazer a partir destas lembranças?
8. “Claro também está que se nunca escrevemos nada, nós que fomos à escola para aprender a ler e escrever, isso é, no mínimo, preocupante. Escrever como quem sente a palavra ventania como a véspera de um furacão (...). Sentir e escrever, pois, são coisas que deveriam andar de braços dados para quem foi à escola. E fico imaginando que aventuras maravilhosas não perdem aqueles que deixam de escrever o que sentem” (78-9).
Dizer a sua palavra é uma forma de grafar a Terra. É ato de cidadania para nós professores, e faz lembrar como recordação quente e gostosa, o mestre Paulo Freire. Mas, essa janela não vou abrir agora, senão me perco ‘demasiado demais’. Ah, como é bom perder-se com e no mestre Freire....
9. “Queria mostrar que a escola pode ser diferente e a geografia, ao invés de tétrica, pode ser poética. Ilustrar a disciplina para fazê-la desencantar os homens dos seus medos de voar”. (93)
10. “Um tema (tarefa) deve ser capaz de suscitar debates, levantar questões, despertar preocupações, recuperar a tradição e vislumbrar o futuro. Pode ser qualquer coisa assim que aparentemente é coisa alguma” (98). Um tema é a ponta de um novelo ....
Isso não implica o ‘tudo vale’ discutir em nome da geografia. Não temos compromisso em sermos uma ‘revista de variedades’ que de tudo fala. Somos preocupados com as coisas nos seus lugares. Uma ciência ‘da ordem’; onde estão as coisas e pessoas. Onde e por que aí?! Há certos consensos. Que bom. Cavalcanti (2009, p. 136) é clara:
“Quando ocorre algo, quando há um fato ou fenômeno relatado, quando se quer entendê-lo em sua dimensão espacial, um primeiro questionamento que se faz, ao se buscar raciocinar geograficamente, é a respeito da localização desse fenômenos, fato, acontecimento. “Aonde?”. Essa é uma questão que nos remete à localização das coisas”. “E isso implica, em responder, às perguntas: onde? Por que aí?” (p. 137)
Já que o decálogo não pode ter onze, doze pontos vou começando a terminar
Como não devo me estender ‘demasiado demais’ peço a você leitor que busque a leitura pausada e atenta do Manoel. Vá na (boa) fonte para saciar a sede direi eu. Antes, uma colheirada a mais de Morin:
“A sala de aula deve ser um local de aprendizagem do debate argumentado, das regras necessárias à discussão, da tomada de consciência e da compreensão do outro, da escuta e do respeito às minorias ...” (Morin, p. 112)
“Durante algum tempo pensei que a atitude mais correta para um professor seria a de permanentemente
oferecer chaves para cadeados, receitas para comidas saborosas, novelos para os outros se guiarem nos labirintos, lampiões para as salas escuras. Cansado dessa verdade pouco lúdica e para mim enfadonha, resolvi oferecer o oposto: cadeados ao invés de chaves, comidas sem receitas, labirintos no lugar de novelos, sombras no interior da luz” (101-102)
Se buscarmos – conseguir seria fantástico - conciliar Morin (debate organizado das ideias, compreensão do outro, pensar o mundo na sua complexidade) com algo do decálogo manuelino ... já teremos um projeto de educação e geografia para muitos anos. As respostas são provisórias, mas tenho convicção que mais importante do que recursos tecnológicos de ponta, uma boa docência requer perguntas e temas instigantes aos alunos, além da crença de que eles sejam pessoas ouvidas de forma interessadamente por nós. Buscar a geografia como pretexto para discutirmos quem somos – eu, tu, nós – e que sociedade temos (“Aprender algo sobre el espacio implica aprender algo sobre nosotros mismos”, Sepúlveda, p. 86, 2009). Perceber quão frágeis somos, quanto precisamos humanizar a Terra com uma espacialidade mais justa e fraterna que permita aos estratos mais deserdados não só saciarem a fome de pão, mas também de poesia e fantasia.
Caminhantes, os caminhos são muitos, as certezas poucas. Eu vou por aqui! Quem está a fim de vir comigo?
Porto Alegre, 1/10/09
fonte:http://docente.ifrn.edu.br/ednardogoncalves/disciplinas/Quais%20saberes%20constituem%20um%20bom%20professor
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Enviado 29/3/10
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