quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Redes e Território

REDES E TERRITÓRIO: UMA BREVE CONTRIBUIÇÃO GEOGRÁFICA AO DEBATE SOBRE A RELAÇÃO SOCIEDADE E TECNOLOGIA

Rogério Leandro Lima da Silveira
Departamento de História e Geografia da Universidade de Santa Cruz do Sul


Tendo presente o debate contemporâneo sobre o significado, as limitações e as possibilidades decorrentes das relações entre técnica e sociedade pretendemos, a partir de um olhar da geografia, analisar como a relação entre redes técnicas e território se inscreve nesse debate. Buscamos, também, responder a questão: como apreender a relação entre redes técnicas e território diante dos reflexos e condicionantes advindos do processo de globalização da economia sobre à produção do espaço geográfico?
Diante dessa opção de entrada no debate, estruturamos nossa reflexão em três momentos.
Em primeiro lugar, buscando melhor comunicar nosso ponto de vista, procuramos ainda que de forma sucinta, deixar claro de qual lugar estamos falando, ou seja, qual o sentido que estamos atribuindo às noções de técnica, de rede e de território – conceitos chave para o desenvolvimento do nosso pensamento e de nossa reflexão.
Em um segundo momento, analisamos o significado e o papel da técnica em relação ao desenvolvimento social e econômico. Para tanto, desenvolvemos uma reflexão sobre a idéia de impacto tecnológico presente na assertiva do papel estruturante das redes técnicas em sua relação com o território.
Por fim, tendo presente os efeitos e as determinações do processo de globalização da economia, quanto à produção e a estruturação do espaço geográfico, analisamos a relação existente entre a funcionalidade das redes técnicas e a institucionalidade dos territórios. Dessa maneira, buscamos apreender até que ponto os diversos lugares e espaços sofrem as mesmas influências, ou experimentam as mesmas possibilidades veiculadas pelas redes? Em outras palavras, por conta da dinâmica de expansão seletiva das redes técnicas é possível pensar na produção de um espaço dual? Ou ainda, a universalidade crescente dessas redes nos permite identificar processos de desterritorialização?

Técnica, rede e território: Do que estamos falando?
De maneira geral, podemos dizer com Abagnano (1982, p.905) que a técnica “compreende todo o conjunto de regras aptas a dirigir eficazmente uma atividade qualquer”, ou ainda, que “é um processo qualquer, regulado por normas e munido de uma certa eficiência”.
Por sua vez, de acordo com Corrêa (1997, p.250) podemos definir, genericamente, tecnologia “como um conjunto de conhecimentos e informações organizados, provenientes de fontes diversas como descobertas científicas e invenções, obtidos através de diferentes métodos e utilizados na produção de bens e serviços”.
Muitas vezes as noções de “técnica” e “tecnologia” têm sido utilizadas para designar o mesmo significado. Todavia, entendemos que, enquanto a técnica explicita regras do modo de ação prática do como fazer, a tecnologia representa uma espécie de teorização das técnicas, no sentido de constituir um procedimento lógico que possibilita compreender a ordem e a racionalidade presente em uma ou na articulação de mais técnicas.
Tendo isso presente, acrescemos a contribuição de Milton Santos (1996, p.25) quando, do ponto de vista da Geografia, destaca a técnica como o mais importante modo de relação entre homem e natureza, entre homem e o espaço geográfico.  Nesse sentido, concordamos com o autor  que “as técnicas são um conjunto de meios instrumentais e sociais, com os quais o homem realiza sua vida, produz e, ao mesmo tempo, cria espaço”.
Todavia, devemos ter presente que a técnica e a tecnologia, como produtos da ação humana devem ser pensadas no contexto das relações sociais e no âmbito de seu desenvolvimento histórico. Assim, na sociedade capitalista, a tecnologia exprime um tipo particular de conhecimento, cujas propriedades o tornam capaz, quando aplicado ao capital, de estabelecer um determinado ritmo à sua valorização.
Assim, a técnica é um elemento chave na explicação da sociedade e dos lugares quando considerada em relação à uma dada temporalidade e espacialidade. Tomada à parte, de forma isolada ela não explica nada. (Santos, 1996). Ou ainda, como diz Lévy (1993, p.194), “A técnica em geral não é boa, nem má, nem neutra, nem necessária, nem invencível”.
As técnicas expressam, por meio dos objetos técnicos, seu conteúdo histórico, e em cada momento de sua existência, da sua criação à sua instalação e operação, revelam a combinação, em cada lugar, das condições políticas, econômicas, sociais, culturais e geográficas que permitem seu aproveitamento. Um desses objetos técnicos é a rede.
Em relação ao conceito de rede podemos, de acordo com Santos (1996), defini-lo a partir de duas dimensões complementares. Uma primeira, se refere a sua forma, a sua materialidade. Nesse aspecto, Curien e Gensollen(1985, p.50-51) assinalam que a rede é toda infra-estrutura, que permitindo o transporte de matéria, de energia ou de informação, se inscreve sobre um território onde se caracteriza pela topologia dos seus pontos de acesso ou pontos terminais, seus arcos de transmissão, seus nós de bifurcação ou de comunicação.
Por sua vez, a segunda dimensão trata de seu conteúdo, de sua essência. Assim, a rede “é também social e política, pelas pessoas, mensagens, valores que a freqüentam. Sem isso, e a despeito da materialidade com que se impõe aos nossos sentidos, a rede é, na verdade, uma mera abstração”.(Santos, 1996, p.209).
Nessa perspectiva, Dias (1995, p.147) complementa que a rede apresenta a propriedade de conexidade, isto é, através da conexão de seus nós ela, simultaneamente, tem a potencialidade de solidarizar ou de excluir, de promover a ordem e a desordem. Além disso, ela destaca que a rede é uma forma particular de organização, e no âmbito dos processos de integração, de desintegração e de exclusão espacial ela “aparece como instrumento que viabiliza (...) duas estratégias: circular e comunicar”.
As redes são animadas por fluxos. São dinâmicas e ativas, mas não trazem em si mesmas seu princípio dinâmico, que é o movimento social. Este, é animado tanto por dinâmicas locais quanto globais, notadamente demandadas pelas grandes organizações. (Santos, 1996).
Para Tinland (2001, p.263), as redes estruturam à sua maneira, o campo de forças das relações de cooperação e de antagonismo que estão presentes na sociedade humana.  As redes “são, de fato, instrumentos de poder e de rivalidades para seu controle. Elas são suscetíveis (...) de funcionar como instrumentos de integração e de exclusão, na linha direta  dos processos de diferenciação”.
Além disso, Offner e Pumain (1996, p.15) ao analisarem as redes técnicas em sua relação com o território, evidenciam que essa relação é ambígua: “ora a rede é “fator de coesão, ela solidariza, ela homogeneiza”, ora ela transgride os territórios, “opondo às malhas institucionais suas lógicas funcionais”.  Nesse aspecto, a análise da evolução das redes, distinguindo sua infra-estrutura, seus serviços e seu comando, permite-nos superar esta contradição evidenciando que sua participação é essencial para a construção de novas escalas territoriais, ainda que seu papel não seja determinante, mas de acompanhamento, na estruturação dos territórios.
Isso nos remete, ao conceito de território.  Em uma primeira aproximação conceitual concordamos com Milton Santos (2002, p.10) de que:
“O território não é apenas o conjunto dos sistemas naturais e de sistemas de coisas superpostas. O território tem que ser entendido como o território usado, não o território em si. O território usado é o chão mais a identidade. A identidade é o sentimento de pertencer àquilo que nos pertence. O território é o fundamento do trabalho, o lugar da residência, das trocas materiais e espirituais e do exercício da vida.”
Esse entendimento pode ser complementado com a proposição de Souza (1995, p.78-79) de que o território deva ser apreendido como “um espaço definido e delimitado por e a partir de relações de poder”. Ou seja, ele é “essencialmente um instrumento de exercício de poder: quem domina ou influencia quem nesse espaço, e como?”
Nessa concepção evidencia-se que o espaço antecede o território. Como destaca Raffestin (1993:143-144):
“Ao se apropriar de um espaço, concreta ou abstratamente (por exemplo, pela representação), o ator “territorializa” o espaço. [Henri] Lefébvre mostra muito bem como é o mecanismo para passar do espaço ao território: “A produção de um espaço, o território nacional, espaço físico, balizado, modificado, transformado pelas redes, circuitos e fluxos que aí se instalam”. (...) O território, nessa perspectiva, é um espaço onde se projetou um trabalho, seja energia e informação, e que, por conseqüência, revela relações marcadas pelo poder”.
Embora mais difundida, a idéia de território não se restringe apenas aquela da escala nacional, associada com o Estado enquanto instância gestora. Territórios existem e podem ser construídos e desconstruídos nas mais diversas escalas, tanto espaciais como temporais. Assim, podemos identificá-lo desde uma dada rua à uma dada configuração regional, ou ainda a partir de um dado recorte temporal de dias até séculos. (Souza, 1995).
Além disso, na medida em que as noções de controle, de ordenamento e de gestão espacial, fundamentais no debate sobre o território, não se restringem  apenas ao Estado, mas igualmente se vinculam às estratégias de distintos grupos sociais e das grandes corporações econômicas e financeiras, o território deve ser apreendido como resultado da interação entre múltiplas dimensões sociais. (Haesbaert, 2002).
Assim, esse sentido relacional presente na definição do território traduz a incorporação, simultânea, do conjunto das relações sociais e de poder, e da relação complexa entre processos sociais e espaço geográfico, este entendido como ambiente natural e ambiente socialmente produzido. Além disso, esse sentido relacional implica que consideremos que o significado do território não apenas se vincula as idéias de enraizamento, estabilidade, limite, fronteira, fixidez, mas também as idéias de movimento, de fluidez, de conexão. (Haesbaert, 2002).
Por fim, concordamos com Offner e Pumain (1996, p.118) que durante o processo de produção do território, ele é reapropriado, praticado e vivenciado distintamente pela sua população, o que permite também designar sua territorialidade. Para eles, ela reflete as múltiplas dimensões desse vivido territorial em que os atores sociais “vivenciam, simultaneamente, o processo territorial e o produto territorial através de um sistema de relações produtivas (ligadas ao recurso) ou existenciais (relevando a construção idenditária, portanto da memória coletiva e da representação)”.

O que podem as redes? Refletindo sobre o efeito estruturante das redes técnicas no território
Como nos lembra Dias (1995), a história das redes técnicas é também a história das inovações tecnológicas em resposta às demandas sociais que surgem em determinados locais e em determinados momentos. Esse é o sentido do surgimento, por exemplo, das redes de transporte como a ferrovia e a rodovia, das redes de comunicação, como a telegrafia, a telefonia e a teleinformática; ou ainda das redes de energia, como energia elétrica, os gasodutos, os oleodutos.
Se pensarmos, portanto, que essas redes apresentam um nítido conteúdo técnico, resultado do processo de inovação tecnológica, podemos então nos aproximar do debate sobre a relação tecnologia e sociedade, refletindo sobre qual é poder das redes técnicas em relação ao desenvolvimento sócio-econômico, ou sobre o possível papel estruturante dessas redes no território.
Isso nos remete, inicialmente, à análise da noção de impacto tecnológico, bastante difundida no atual estágio capitalista, especialmente por conta de uma presença cada vez maior da tecnologia no desenvolvimento das relações sociais e econômicas.
Benakouche (1999) nos chama atenção de que no âmbito da Sociologia, especialmente na chamada Sociologia da Técnica, alguns autores como Wiebe Bijker, Thomas Hughes e Trevor Pinch (1987), têm realizado a crítica do conceito de impacto, notadamente em relação a idéia de determinismo tecnológico, informada pelos pretensos impactos sociais contemporâneos da técnica. Nessa perspectiva, critica-se a idéia de autonomia ou de externalidade social da técnica, como se tivéssemos uma efetiva dicotomia entre a tecnologia que promoveria os ditos impactos , e a sociedade, que os sofreria.
Para Bijker, Hughes e Pinch (1987), no entanto, não há razão para a existência desses limites, dessa separação, uma vez que a técnica possui sempre um conteúdo social, ao passo que, simultaneamente, a sociedade contemporânea possui um conteúdo essencialmente tecnológico. Os autores ainda questionam: sobre a responsabilidade pela definição das tecnologias que acabam determinando impactos; sobre o seu controle; sobre o comportamento dos impactos em relação às diversas sociedades.
Nesse sentido, concordamos com Benakouche (1999, p.2) de que a busca do entendimento do significado da técnica “é uma tarefa essencialmente política, na medida em que uma clareza sobre a questão é fundamental tanto na tomada de decisões a respeito do seu desenvolvimento, como no planejamento da sua adoção ou uso, seja por indivíduos, unidades familiares ou organizações”. Ao responsabilizar-se a técnica por seus eventuais “impactos sociais”, sejam negativos ou positivos, acaba-se manifestando o desconhecimento de “quanto – objetiva e subjetivamente – ela é construída por atores sociais, ou seja, no contexto da própria sociedade”.
Nesse aspecto, e de acordo com essa concepção, o que se torna relevante no estudo das relações entre tecnologia e sociedade é a análise do processo de produção e de difusão dos objetos técnicos. Tendo isso presente, nossa reflexão avança, evidenciando nesse debate a relação redes e território.
No âmbito das redes técnicas, especialmente em relação ao significado e a dinâmica das redes de telecomunicações, Offner e Pumain (1996, p.23) assinalam que “a tecnologia não é tudo, a apropriação social permanece determinante. Todavia, a tecnologia não é neutra: ela baliza o campo das possíveis interfaces entre redes e territórios”.
Nesse aspecto, como assinala Dupuy (1982), contrariamente à idéia de impacto que informa que as redes técnicas são exógenas à sociedade, a imagem de uma relação dialética da técnica e sociedade é certamente mais conveniente que aquela que coloca somente a técnica na origem das mudanças sociais.
Offner (1993), ao analisar a idéia de efeito estruturante presente no desenvolvimento das infra-estruturas de transporte e de comunicação, salienta que, em verdade, diante da absoluta ausência de sua validação científica, trata-se da constituição de uma mistificação científica e de um mito político. Para ele, os numerosos estudos empíricos já realizados sobre o tema colocam em dúvida essa causalidade linear entre o desenvolvimento de uma dada oferta nova de transporte e as transformações espaciais, sociais ou econômicas. Assim, ao invés de se considerar a noção de efeito estruturante ou de impacto, informados através da idéia de determinismo tecnológico, deverse-ia adotar a noção de potencialidade para se buscar apreender a real complexidade da relação entre rede e território.
Por sua vez, a esse respeito, Offner e Pumain (1996) destacam que não se trata de negar esses efeitos, mas de não concordar com a causalidade direta entre a presença de uma infra-estrutura nova e o desenvolvimento do espaço sobre o qual ela é instalada. Os autores, citando Gérar Claisse e Didie Duchier (1993), demonstram que essa noção de efeito estruturante é contestável por várias razões:
“A retórica dos efeitos estruturantes pertence a um paradigma científico bem conhecido, cujos principais componentes são: o determinismo técnico, a metáfora mecânica, um sistema de causalidade linear, o modelo econômico de racionalidade pura, o positivismo...
- O determinismo técnico consiste em transferir, sem precaução, as vantagens de um sistema técnico para a sociedade que o utiliza, e em induzir profundas transformações econômicas e sociais. Enquanto que todo sistema técnico é antes de tudo, uma produção social que se insere na sociedade, mas que ele não a transforma;
- A metáfora mecânica que se articula sobre um sistema de causalidade linear toma lugar de demonstração: pois as regiões mais dinâmicas são as melhores servidas, toda melhoria do serviço de uma região ocasiona seu desenvolvimento econômico;
- O modelo econômico de racionalidade pura e seus desenvolvimentos nos domínios da economia espacial e da localização das atividades adquirem lugar de legitimação e de interpretação teóricas dos mecanismos econômicos que são assim mobilizados;
- O positivismo dá um sentido político e ideológico à esses efeitos estruturantes permitindo o desinteresse sobre a questão dos efeitos desestruturantes.”  (Offner e Pumain, 1996, p.50-51).
Pensar a relação entre rede e território implica que consideremos de acordo com Musso (2001, p.214), que a rede é “uma estrutura de interconexão instável, composta de elementos em interação, e cuja variabilidade obedece a alguma regra de funcionamento”. Segundo Sfez (2001, p.97), essa instabilidade se deve ao fato das variações no fluxo induzirem novas conexões à cada etapa – extensão, redução ou um novo tecer da rede – mas também adaptação do organismo reticular às novas condições do ambiente, e acrescemos nós, ao conteúdo e à dinâmica do território.
Nesse aspecto, Offner e Pumain (1996), lembram que se as redes técnicas, especialmente as de transporte, não engendram automaticamente atividades, elas mostram, contudo, ter um papel amplificador das tendências existentes, na medida em que aceleram tanto o declínio quanto o crescimento de um dado território. Assim, “o movimento migratório, positivo ou negativo, se acelera, a vitalidade ou o declínio industrial igualmente. Esta aceleração pode ser explicada se consideram as redes de transporte simultaneamente como produto e suporte da atividade social”. (Plassard apud Offner e Pumain, 1996, p.52).
Além disso, como nos lembra Sánchez (1991), ao analisar a relação entre espaço e novas tecnologias, trata-se efetivamente de pensar essa relação a partir de duas perspectivas. Se por um lado as novas tecnologias, e aqui se enquadram as redes técnicas, exercem visível influência sobre o território, por outro lado, este se apresenta como um condicionante ao desenvolvimento dessas novas tecnologias, em função tanto das suas características fisico-ambientais, como também enquanto espaço social e historicamente produzido.
Assim, devemos pensar a rede técnica como um elemento que abre um horizonte de possibilidades em relação ao desenvolvimento de um dado território. A instalação e o aproveitamento das redes técnicas, engendrados por uma dada dinâmica social e econômica, e expressão de relações de poder existentes no lugar, torna aparente tanto as potencialidades como os constrangimentos ao desenvolvimento social e espacial do território.

Globalização e espaço geográfico: Entre a funcionalidade das redes técnicas e a institucionalidade dos territórios
O processo de globalização da economia capitalista nos tem permitido identificar a constituição de um mercado hierarquizado e articulado pelo capital monopolista. Este mercado pressupõe um espaço onde a fluidez da informação, dos produtos, das relações sociais e do próprio capital possam ocorrer, com destaque para a aceleração da circulação do capital e sua correspondente acumulação.
Assim, a exigência permanente, pelos atores hegemônicos, de uma cada vez maior fluidez tem resultado na ampliação e na complexificação da divisão territorial do trabalho e das diversas formas de circulação.
Nesse contexto, de afirmação do espaço dos fluxos não há como não considerar o fato de que a fluidez e a funcionalidade técnica requerida ao território evidenciam a importância estratégica e funcional das redes técnicas.Nesse aspecto, as reflexões quanto aos efeitos e às determinações do processo de globalização da economia em relação ao papel das redes e sua relação com a produção e organização do espaço geográfico em geral, e do território em particular, adquirem fundamental importância.
Todavia, devemos ter presente que as redes não podem ser pensadas como sugere Castells (1997). Esse autor, propõe a existência contemporânea de uma “sociedade-rede” onde o poder dos fluxos é prioritário em relação aos fluxos de poder,  e na qual as redes, na condição de protagonistas, determinam economias e influenciam sociedades, ou mesmo promovem uma inexorável desterritorialização. Para nós, essa posição evidencia uma rápida  transposição da lógica e dinâmica de funcionamento das redes técnicas para a análise da sociedade.
Pensamos como Offner (1993), que os dispositivos técnicos, como as redes, devem ser entendidos como produtos da sociedade em determinado momento histórico. Para ele, ao se reificar um dado objeto técnico, valorizando o seu determinismo tecnológico, esquece-se que o equipamento não é uma coisa, mas um suporte de ações.
Por sua vez, as contribuições de Paul Virilio (1993) de Marc Augé (1994), e de Saskia Sassen (1998), em suas distintas abordagens, assinalam alguns pontos em comum com referência a esse debate. Para eles, diante da nova racionalidade do mercado capitalista, da flexibilização das relações de produção e da emergência e crescente universalização das redes técnicas, em especial de comunicação, vivemos em um período de aprofundamento da aceleração dos eventos, de contínuo encurtamento das distâncias, de exacerbação dos fluxos e de homogeneização do espaço pela expansão do capital hegemônico à escala planetária. São características que permitem suscitar a idéia de anulação do espaço pelo tempo.
De tal posição deriva a compreensão de que nesse novo contexto temos em curso o fim da geografia em suas distintas configurações. Ou seja, o espaço geográfico e o território perderiam sentido e importância na análise da realidade, uma vez que, segundo Augé (1994) estaríamos diante da afirmação da existência de não-lugares, ou como sugere Castells (1997) vivendo um momento em que o espaço dos fluxos se contrapõe ao espaço dos lugares. Essas idéias tem sido difundida, de forma recorrente, através de expressões como as que asseveram a existência da “desterritorialização” das atividades humanas e a “despersonalização” do lugar enquanto singularidade.
Assim, estaríamos vivendo um momento, na atual dinâmica de desenvolvimento capitalista, em que as redes técnicas são percebidas afirmando crescentemente seu o caráter essencialmente universal, na media em que elas provêm o mesmo serviço em todos os pontos do território, homogeneizando-o quanto ao seu conteúdo técnico. Essa idéia permite, então, identificar as redes como instrumento de desterritorialização. (Offner, 2000).
Por sua vez, uma outra compreensão do papel das redes técnicas é aquela que atribui a elas um efeito estruturante em relação ao território no que se refere a localização das atividades econômicas. Nessa perspectiva, de acordo com Offner (2000, p.167), “as redes constituem “seletores” territoriais, criando um espaço dual: territórios com ou sem um serviço, conectados ou não pelas redes”.
Nesse aspecto, faz-se necessário não concebermos o espaço como contendo um conjunto de fluxos homogêneos, mas termos presente a idéia da diversidade da dinâmica espacial estimulada pela combinação ou confrontação da racionalidade econômica e das estratégias dos atores que possuem interesses territoriais.
Assim, concordamos com Offner (2000), de que a realidade da interação entre redes e territórios contradiz os mitos da desterritorialização e de um espaço dual, bem como aquele dos possíveis efeitos estruturantes que as redes de comunicação têm sobre os territórios. Todavia, as redes não são neutras quanto à dinâmica territorial, elas tornam possível a criação ou o reforço da interdependência entre os lugares, formando um sistema. Para ele, “a despeito do discurso quanto à universalidade das redes, os mesmos serviços não existem em todos os lugares.(...) As redes também não criam um espaço dual, mas podem contribuir para a produção de desigualdades territoriais.” (Offner, 2000, p.168-170).
Milton Santos por sua vez complementa: “No mundo da globalização, o espaço geográfico ganha novos contornos, novas características, novas definições. E, também, uma nova importância, porque a eficácia das ações está estreitamente relacionada com a sua localização. Os atores mais poderosos se reservam os melhores pedaços do território e deixam o resto para os outros” (Santos, 2000, p.79).
De acordo com esta última posição entendemos que, no atual contexto da economia globalizada, as mudanças no padrão tecnológico e produtivo se fazem acompanhar da emergência de novas formas espaciais, ou de velhas formas espaciais com novos conteúdos, e de uma nova lógica espacial onde, a priori, o espaço dos fluxos tende a sobrepor-se ao espaço dos lugares. O lugar redefine-se a partir do potencial integrativo do novo padrão tecnológico, ganhando em densidade comunicacional, informacional e técnica no âmbito das redes informacionais que se estabelecem em escala planetária.
Nesse aspecto, concordamos com Veltz (1999, p.09) quando ele diz que “a imagem de uma economia pura de fluxos indiferente aos lugares não se sustenta, pois é simplesmente contraditória, devido, antes de tudo, a crescente polarização geográfica das atividades”. O desafio, para ele, é o de “compreender como a economia global funde suas raízes, de múltiplas maneiras, nas estruturas territoriais históricas, e como o global se nutre constantemente do local transformando-o”.
Isto implica também considerarmos, como lembra Milton Santos (1994), a complexidade da qual se reveste a realidade territorial em que vivemos. Diante da existência de um novo, ainda que desigual, conteúdo técnico-científico e informacional do espaço geográfico permeado de fluxos com diferentes níveis, intensidades e orientações, assiste-se a uma intensificação da diversidade e da heterogeneidade entre os lugares do mundo. Nesse processo, à divisão tradicional do trabalho, através da especialização econômica das distintas parcelas da totalidade espacial, vemos o acréscimo de uma outra, produzida pelos vetores da modernidade e da regulação.
Dessa forma, têm-se a reafirmação da dimensão espacial na medida em que se acentua a importância conferida à diferenciação concreta entre os distintos espaços geográficos. Na verdade, os diferentes espaços do mundo, em suas distintas escalas geográficas, constituem suporte e condição para as relações globais. É neles que a globalização se expressa concretamente e assume especificidades. Assim, entendemos que o argumento de que a crescente universalização das redes técnicas, decorrente da expansão do capital hegemônico, tem permitido a homogeneização do espaço e levado, consequentemente ao processo de desterritorialização dos lugares, não se sustenta.
Para Offner (2000, p.170), se a realidade da interação entre redes e territórios contradiz os mitos de desterritorialização e de dualidade do espaço, isso não significa, contudo, afirmar a neutralidade das redes técnicas em relação à dinâmica territorial. Para ele, a verdadeira eficácia territorial das redes é designada pelo fato de que elas “tornam possível a criação ou o reforço da interdependência entre os lugares”. Ou seja, através das redes os territórios formam um sistema. (Offner e Pumain, 1996).
Além disso, essa interdependência possibilitada pelas redes é de origem econômica e política. Isso por que, enquanto instrumentos de intermediação, de intercâmbio, as redes estão fundadas no coração das operações de mercado. Assim o território onde elas se instalam informa seu conteúdo econômico e político, na medida em que a configuração espacial das redes técnicas resulta do embate político entre Estado e mercado. Nesse embate o poder público geralmente é chamado a prover o conjunto de infra-estruturas que facilitem e assegurem as melhores condições para o desenvolvimento das atividades do mercado.
Offner (2000), lembra ainda que as redes são igualmente mobilizadas na construção de territórios políticos, na medida em que permitem o desenvolvimento da solidariedade  e do controle espacial. Nessa direção, Offner e Pumain (1996, p.41) analisando as redes técnicas, e em especial as redes de transportes, assinalam que elas “ são mais do que um suporte de funcionamento dos territórios, elas são também um fator de seu desenvolvimento, na medida em que suscitam, pouco à pouco, sobre os espaços onde elas estão organizadas, solidariedades territoriais e sociais entre homens, grupos e comunidades”.

Considerações finais
Assim, um olhar geográfico para esse debate, implica, como sugere Offner (2000) que não devemos partir da idéia de negação das transformações do trabalho no âmbito da organização espacial, mas acima de tudo buscar ir além dos mitos recorrentes das relações deterministas entre redes e sociedade, e entre redes e territórios.  Ou seja, devemos evitar o determinismo tecnológico presente na maior parte das reflexões sobre os macros sistemas técnicos existentes; o determinismo econômico, revivido pela real ameaça que a globalização da economia coloca para os diferentes modos de governo; e o determinismo sociológico presente, muitas vezes, na “tirania dos costumes” como explicação final para o desenvolvimento do mercado.
Assim, ao invés de valorizarmos a idéia de que a rede, em sua relação com o território, desempenha um papel estruturante e determinista, o que reforça seu conteúdo mítico e mitificador, devemos pensar a rede como sugere Dias (1996, p.5): "como um sistema, como uma forma de organização e, no lugar de considerá-la isoladamente, procurar sua relação com a urbanização, com a divisão territorial do trabalho e com a diferenciação crescente que essa divisão introduziu entre nações, regiões e cidades". 
Além disso, nesse debate, não devemos conceber o espaço como contendo um conjunto de fluxos homogêneos, mas termos presente a idéia da diversidade da dinâmica espacial estimulada pela combinação ou confrontação da racionalidade econômica e das estratégias de atores com muitos e distintos interesses territoriais.

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